amagi

amagi

sexta-feira, 25 de julho de 2014

A família e o Estado: retrato de um casamento calamitoso

O post de André Abrantes Amaral no insurgente é, a meu ver, um fidelíssimo retrato do estado geral a que chegámos. E recordando as palavras de Salgueiro Maia quando tratava de motivar a tropa que o acompanharia na noite de 24 de Abril da E.P. Cavalaria de Santarém rumo ao terreiro do Paço, «há três tipos de Estado: os Estados Capitalistas, o Estados Comunistas e o estado a que chegámos». Este foi e é o estado a que chegámos. E sim, as maiúsculas e minúsculas diferenciam o que é diferente.

Contra o Estado do Deus, Pátria, Família do Estado Novo, um Estado que não sendo confessional como o Espanhol ou totalitário como o Italiano e, em muito maior dimensão, o nacional-socialista Alemão; o Estado da Terceira República Portuguesa é amoral. Ao olhar para trás, preferiu não impor uma teia de valores e esqueceu que a poderia sugerir, não por sua iniciativa, mas deixando a sociedade civil discuti-la. Para ele, Estado, bastava recolher-se e deixar as pessoas pensarem e decidirem. Mas não. Do alto da seu bem conhecido pedestal moral - porque coactivo, acrescente-se -, o Estado não só não ousou sugerir ou impor, como não permitiu que na colectividade as instituições formadas por homens livres ousassem propô-las. Fascistas eram o nome porque temiam ser chamados. Ao invés de assumir o risco de serem incompreendidos e esperarem que o tempo lhes desse razão, como fazem os grandes homens de Estado, preferiram o facilitismo, preferiram o curto-prazo, preferiram o ciclo legislativo de 4 anos findo o qual os dados não novamente lançados e tudo muda. Normalmente para pior.

O Estado esquece que sem âncoras morais nenhuma sociedade se mantém. Neste mundo em que «tudo» é relativo, famílias com filhos são tratadas de forma igual ás que não têm. Faz sentido. Num Estado mínimo, sem segurança social ou instituições providenciais algumas, faria todo o sentido. Mas neste Estado Social, neste Estado meio-colectivizada, em que as externalidades das acções e/ou omissões de uns se abatem sobre todos os demais, neste Estado em que as contribuições dos que trabalham servem para pagar as pensões/jubilações/reformas/aposentações - ufa!!! - na esperança, repito, NA ESPERANÇA, de que os que se seguem façam o mesmo; neste Estado, faria todo o sentido que sobre as famílias com filhos recaísse uma descriminação fiscal positiva, como agora se diz, porque os que não têm filhos podem aforrar substancialmente mais dos que aqueles que criam os que lhes irão pagar a reforma dos que não se dão ao trabalho de os ter. Esta é a contradição do arranjo: o Estado, tendo em conta o sistema que impôs aos cidadãos, tinha a obrigação de proteger a instituição família ao invés de a desprezar. E passados tantos anos, nem esta lição parece ter aprendido.

Quando alguém disser que a própria existência de um Estado Social não limita a liberdade das pessoas a terem ou não filhos, a argumentação acima apresentada invalidará, a meu ver, rapidamente o juízo. E, já agora, explica porque é que o aforro das famílias desceu abruptamente em 40 anos, poupanças essas tão necessárias para investir em capital fixo que tão urgentemente necessitamos. Quem discordar desta análise não deve apresentar como argumento que no passado era mais fácil poupar do que agora, porque não era.

Todos nós temos valores partilhados, a isso chamaríamos a moral colectiva. Temos também um conjunto de valores que resultam da nossa própria visão, do nosso próprio ponto de vista, e que ganham forma na ética que, como sabemos, é uma reflexão sobre a moral. O problema foi que cada vez que havia um golpe de Estado a que, normalmente, se seguia uma mudança de regime, o código moral imposto, e não o aceite por todos de forma não coactiva mas consuetodinária, muda ele também. Foi assim com o feroz anticlericalismo da I República por contraponto à força apresentada pela religião de Estado que era a católica na Monarquia, é assim com a família na III República quando comparada com o papel que esta instituição tinha na II República. Quando nos perguntamos por que é que a Espanha, estando num ponto desenvolvimental semelhante ao nosso no pós segunda guerra mundial, se descolou de nós de tal forma que o seu grau de desenvolvimento é hoje incomparavelmente superior; devemos lembrar-nos desse «assombro ao mundo» que representou a sua transição quando comparada com a nossa revolução. Goste-se ou não da instituição monárquica, e assumam-se os escândalos que aqui e ali teve, tem e terá - e que, diga-se, com uma irrepreensível frieza e sentido de Estado tem sabido debelar -, ela corporiza um conjunto de valores que não mudam de 4 em 4 anos, ela assume um conjunto de princípios que, sendo apartidários, são políticos e são morais, e assume-os sem medo, sem pudor, sem sentimento de superioridade, sem essa mescla de indiferença progressista e marxizante, sem querer assumir uma isenção partidária que quem liderou um partido não pode jamais assumir e sem um pseudo amoralismo que, pela sua vacuidade, pode ainda ser pior do que uma base moral com a qual discordemos.

A família é um pilar do indivíduo, da sociedade, não propriedade do Estado. A família não é um factor de produção que possa ser manobrado quando dá jeito e esquecido, deitado fora como um trapo, quando as circunstâncias mudam.

A família é o Pilar da colectividade, e são os indivíduos que a formam que se agregam voluntariamente para formar uma arranjo político-jurídico-institucional a que se convencionou chamar Estado porque entendem que essa é a melhor forma de gerir a vida em sociedade. Quando o Estado se transforma num leviatã que acredita que as pessoas são apenas livres porque ele o permite e não porque a sua própria natureza se encarrega de as assim trazer ao mundo, quando o Estado criou por décadas e em gerações inteiras a ideia de que a sua vida lhe pertence, quando o Estado se permite ao desplante de pedir mais filhos para não fazer as mudanças estruturais que a Administração necessita urgentemente para evitar a mais que provável insolvência deste estado, deste Estado Social baseado em argumentação mais populista que de racionalidade económica; então este Estado não pode esperar das pessoas outra sentimento que não aquele que ele mesmo nutre por elas: desdém.

Façamos o que se impõe, mudemos o que é urgente mudar: preparemos o futuro dos nossos filhos e não os façamos assumir contas resultantes dos erros do passado.

Ontem era já tarde. Amanhã será tarde demais.

1 comentário:

  1. Alexandre,

    Mais um artigo que exigiu (e ainda bem!) leitura mais atenta. Endereço-lhe as seguintes observações e perguntas:

    - quando diz: "O Estado esquece que sem âncoras morais nenhuma sociedade se mantém. Neste mundo em que «tudo» é relativo, famílias com filhos são tratadas de forma igual ás que não têm.", mesmo que, de seguida, lhe afine a formulação, a sua passagem parece encerrar, mantendo-o, o problema de fundo; mas por que razão há-de o estado (ou seja quem for) discriminar (não descriminar, como ocorre no texto) entre quem tem filhos e quem não tem? Aceitar essa possibilidade, mesmo depois da afinação que o Alexandre faz de seguida, não é perpetuar o que pretende terminar?

    - na passagem: "E, já agora, explica porque é que o aforro das famílias desceu abruptamente em 40 anos, poupanças essas tão necessárias para investir em capital fixo que tão urgentemente necessitamos." - é factualmente correcta, mas a razão será a supressão, por parte dos estado, das taxas de juro, certo? Que relação com a família? Por que seria igualmente difícil poupar há 40 anos? Seria pelos baixos salários, é isso? É que as taxas de juro…

    - na passagem: "Todos nós temos valores partilhados, a isso chamaríamos a moral colectiva. Temos também um conjunto de valores que resultam da nossa própria visão, do nosso próprio ponto de vista, e que ganham forma na ética que, como sabemos, é uma reflexão sobre a moral."; não confundirá os conceitos de moral e de ética? Há na tradição continental, pelo menos, quem aceite a divisão do grego "ethos" em costume (no latino mores) e ética, mas isso trará problemas na compreensão da realidade dos valores (atrevo-me a sugerir o seguinte artigo onde a temática é analisada com detalhe, aqui: http://criticanarede.com/fil_eticaemoral.html); pessoalmente, não sei se estamos racionalmente caucionados a considerar a existência de uma moral colectiva; por isso teríamos de recusar a imposição de um "código moral colectivo", já que para ser moral (no sentido que o Alexandre prefere) se recusa ao indivíduo a condição necessária e suficiente para algo poder ser moral: i.e. ser resultado de uma escolha (talvez por isso, traz para o texto o conceito consuetudinário de radicação nos costumes e hábitos);

    - na seguinte passagem: "A família é o Pilar da colectividade, e são os indivíduos que a formam que se agregam voluntariamente para formar uma arranjo político-jurídico-institucional a que se convencionou chamar Estado porque entendem que essa é a melhor forma de gerir a vida em sociedade."- acredita no mito da agregação voluntária dos indivíduos? Mas alguém lhe (nos) perguntou se era este o arranjo institucional que queríamos? Se o estado tem legitimidade para existir? Se são legitimas as funções que possui? Ao colocar o problema dessa forma, não estará o Alexandre a evitar que possamos assumir que, de facto, não há fundamento ou legitimação que tenhamos alguma vez outorgado ao estado, às suas funções e políticas?

    - "Quando o Estado se transforma num leviatã…", mas pode, de facto e considerando valores e princípios filosóficos fundamentais, não transformar-se num Monstro? Quais são os incentivos da sua orgânica, da sua arquitectura que impeçam esse desenvolvimento? Basta ter por referência a simplicidade do conjunto dos direitos naturais (básicos, digamos assim) para perceber que a contradição cedo se revela, por exemplo, entre a Liberdade e o seu absoluto contrário.

    Terminando este longo comentário, faço votos de que mantenha acesa esta chama de discussão crítica.

    Saudações,
    LV

    ResponderEliminar